CINE EM SALA
Um Guia Fílmico para Professores
Contato
Contato é um filme de ficção científica de 1997 dirigido por Robert Zemeckis. Adaptação do romance homônimo de Carl Sagan narra a trajetória da astrofísica Eleanor Arroway (Ellie), interpretada por Jodie Foster. Desde sua infância, a pesquisadora é fascinada pela comunicação via rádio, iniciando sua paixão pela prática de rádio amador, estimulada pelo seu pai, figura importante no desenvolvimento da sua curiosidade. Ellie torna-se astrofísica do projeto SETI, realizando investigações de possíveis ondas de rádio emitidas por civilizações extraterrestres por meio de radiotelescópios. A pesquisadora vê-se obrigada a lidar com dificuldades diversas, sobre tudo, os olhares céticos dos seus superiores e patrocinadores, que acreditam que uma pesquisa como esta seria mau uso do dinheiro público ou um mau investimento. O cenário se inverte quando Ellie e sua equipe detectam sinais vindos do sistema de Vega, contendo instruções de criação de uma misteriosa máquina.
Interessante observar que embora a obra trate de vida extraterrestre, o seu foco são os seres humanos e questões genuinamente humanas, tais como ciência, fé, amor e as relações entre os indivíduos. Além disso, por ser baseado na obra de um cientista, Contato é uma história riquíssima do ponto de vista científico, evidenciando as relações entre ciência e fatores sociais, políticos, econômicos e culturais. Além de destacar muito da prática científica, bem como as influências que questões pessoais podem trazer ao pesquisador enquanto individuo ou em comunidade. Observa-se ainda as questões de gênero dentro da comunidade científica.
Contato
(1997)
No entanto, dentro de toda esta riqueza de questões que o filme aborda, optamos por observar as questões relativas à prova científica e a subjetividade do cientista. Ponto este que permeia toda a obra e trás influência importante no clímax do filme. Julgamos interessante abordar estes assuntos em sala de aula, uma vez que as disciplinas das Ciências da Natureza carecem de oportunidades de debates que aproximem suas disciplinas de questões referentes ao fazer e pensar científico.
Selecionamos aqui cinco momentos da obra que colaboram para o debate que propomos, sempre tendo em mente os recursos de linguagem cinematográfica como nossos aliados.
A subjetividade do cientista
Tratando da questão subjetiva de Ellie, temos como algo fundamental a relação desta com o seu pai (Ted Arroway). Podemos compreender muito da personalidade da personagem baseado nas cenas de sua infância, onde temos oportunidade de entender melhor a relação desta e Ted.
No primeiro ato do filme há uma cena de diálogo entre pai e filha. Esta cena pode ser analisada do ponto de vista técnico e por meio do diálogo desenvolvido. Enquanto as primeiras frases são ouvidas, a câmera exibe a parte externa da casa. Conforme o diálogo se desdobra, a câmera realiza um travelling para frente, aproximando-se de uma das janelas. Sem cortes, a câmera atravessa a janela e se desloca pelos cômodos, aproximando-se lentamente do quarto onde os dois conversam. Toda a cena é realizada em um único plano, aproximando-se cada vez mais dos personagens. Neste momento, o diretor nos dá a oportunidade de adentrar no lar e compartilha conosco o íntimo familiar.
Cena 1 - A infância de Ellie e a influência de seu pai.
Seguindo as categorias de linguagem cinematográfica propostas por Martin, o movimento de câmera tal como é realizado nesta cena nos permite nestes momentos iniciais estabelecer um vínculo maior com os personagens e nos evidenciam questões particulares e íntimas desta família.
O diálogo reforça isto: a curiosidade da menina, o estimulo do pai à sua curiosidade, o fascínio pelo rádio amador e o desejo de usar este para comunicar-se, tornar-se próxima dos que estão longe, inclusive sua mãe falecida. Esta cena mostra muitas características que viriam a tornarem-se marcantes na personalidade e postura da Ellie pesquisadora, evidenciando como na prática científica há influências de cunho pessoal do cientista. Neste momento temos o vislumbre de uma memória infantil de Ellie. Aparentemente de modo desnecessário para a trama, Ellie entrega para o seu pai o desenho de uma praia de Pensacola com característicos coqueiros retorcidos que serão retomados em outro momento no filme.
Dados e Provas Científicas
Cena 2 - A descoberta de sinais de rádio por Ellie
Temos mais uma interessante cena no momento em que Ellie detecta a frequência extraterrestre. Ellie encontra-se deitada no capô do carro, com fones de ouvido e olhos fechados. A câmera aproxima-se do seu rosto, estabelecendo um primeiro plano em seus olhos fechados, enquanto o ruído representando o sinal de rádio aumenta o volume. Ao abrir os olhos, Ellie expressa surpresa e espanto. A cena seguinte à mostra em contre-plongée, com o radiotelescópio ao fundo, criando sentido de conquista e triunfo pessoal. Logo em seguida temos uma sequencia onde Ellie contata sua equipe e desloca-se apressadamente até o laboratório. Ao entrar no prédio temos um plano sequencia, Ellie corre pelos corredores e escadas, abre apressadamente as portas até chegar à sala onde se encontra sua equipe. O uso do plano sequencia neste caso confere dinamismo à cena, evoca sentido de urgência.
Interessante notar que embora o plano sequência tenha sido usado em duas cenas destacadas até aqui, temos sentidos distintos. Além do contexto, a velocidade da câmera, movimento dos personagens, diálogos e trilha sonora ajudam na construção do sentido pretendido. Portanto, a técnica usada reforça determinados sentidos desejados pelo realizador.
Mais adiante, a equipe depara-se com uma repentina e breve ausência do sinal investigado, o que gera apreensão entre os pesquisadores. A câmera faz diversos cortes entre os personagens com expressões incrédulas, tensas, desanimadas e os equipamentos sem medir qualquer sinal. Ao buscar ajustar o equipamento, Ellie quase toca neste, ao passo que o ruído é retomado imediatamente. É como se por instinto, por um ato de vida, o equipamento voltasse a funcionar.
Estes elementos criam um dinamismo em cena que causa tensão. Temos uma clara ligação entre pesquisador e ferramenta, parecendo haver uma comunhão entre ambos. Na ausência de qualquer um destes elementos, o outro é inútil: o equipamento sem pesquisador não é uma ferramenta útil, bem como o pesquisador sem o equipamento possui seus sentidos limitados para compreender a natureza. Esta relação nos expressa a questão indutiva do conhecimento científico, onde alguns aspectos são percebidos de maneira indireta. Esta percepção pode ocorrer de diferentes formas, uma destas se dá por meio de ferramentas, que ampliam nossa percepção.
Interessante observar que no contexto desta cena em particular, a própria ausência de sinal é um dado em si, sendo um intervalo entre contagens ou estabelecendo seu reinício. Isto é percebido por Ellie que, põe-se imediatamente a contar o número de vezes que os ruídos cessam, determinando que estes obedecem uma ordem.
A Navalha de Occan
O conceito da Navalha de Occan (ou Ockham) é recorrente em Contato. Trata-se de um principio lógico, também conhecido como lei da parcimônia e recebe o nome do filósofo Guilherme de Occan. Nascido na cidade de Ockham, Surrey, entre 1280 e 1300. O princípio é formulado a partir do enunciado: “é inútil fazer com mais o que pode ser feito com menos” (Russel, 2013). Cabe destacar que este principio não assume que as dinâmicas do mundo são simples e, portanto devem ser explicadas de maneiras simplórias, mas sim de que para entendermos a Natureza devemos modelar hipóteses com o mínimo de complexidade possível (Rodriguez-Fernández, 1999). O que fez com que o principio ganhasse bastante força nas ciências naturais.
Um dos pressupostos da Navalha de Occan que merece destaque para a nossa discussão diz respeito a questão da prova: “Nenhuma pluralidade deve ser assumida, a menos que possa ser provada (a) pela razão, (b) pela experiência, ou (c) por alguma autoridade infalível" (Roald Hoffmann, 1997, p.5). É neste sentido que pretendemos direcionar nossa análise de Contato. Observamos que o princípio da Navalha de Occan é importante para o desdobramento de sua trama, sendo citado em dois momentos importantes do filme. Em ambas as ocasiões a questão da prova é um elemento central.
Durante o diálogo entre Ellie e Joss (interpretado por Matthew McConaughey)a respeito da existência de Deus e a sua carência de provas, Ellie usa a Navalha de Occan para propor a Joss que a hipótese de um criador inteligente que planejou e arquitetou todo o universo parece complexa demais diante da hipótese científica de origem do universo. Para mostrar que a veracidade de algumas experiências humanas não necessitam de provas, Joss utiliza um contra argumento, questionando se Ellie amava seu pai. Ao responder que sim, Joss lhe pede provas. Trata-se neste ponto de uma afirmação em que a veracidade não tem como ser provada por ela, embora se assuma que seja verdadeira. Neste caso, assumimos que Ellie poderia provar o amor pelo seu pai por meio da experiência, ou seja, por meio da demonstração de momentos entre os dois que assuma o seu amor por este. No entanto, estes momentos são tão subjetivos, tão íntimos, que podem ser de difícil verificação.
Mais adiante a Navalha de Occan volta a ser central no clímax do filme.
Cena 3 - Ellie, Joss e a Navalha de Occan
O contato de Ellie
Toda experiência de contato de Ellie possui uma forte carga subjetiva, permeada com suas memórias e expectativas. O diretor do filme deixa isto muito claro com um simples movimento de câmera: durante sua viagem, ainda no interior da máquina, Ellie encontra-se fascinada com o que observa do cosmos, durante este momento a câmera realiza um travelling para frente aproximando-se cada vez mais de seu rosto, até realizar um primeiríssimo plano em um de seus olhos. Um corte na imagem é realizado, mostrando-a logo em seguida na “praia”. Não há duvida, esta sequencia é uma aproximação que o diretor nos oferece da intimidade de Ellie, uma oportunidade de sondarmos o seu inconsciente e suas memórias, tal qual fizeram os seres de Vega. É a evidência que o realisador do filme encontrou para nos mostrar com certa sutileza e beleza a magnitude da experiência vivida pela personagem.
Estas evidências se desdobram não só na presença do “pai” de Ellie que surge logo a seguir, mas também no cuidado que o diretor teve com a composição da imagem fílmica. O cenário da praia de Pensacola remete à cena da sua infância no inicio do filme. É evidente a reconstrução dos coqueiros tortos dobrando-se sob a praia, assim como em seu desenho infantil. E mais belamente ainda é a despedida oferecida por seu “pai” ao assistirem juntos a chuva de meteoritos, momento adiado anteriormente pela morte prematura de Ted.
Todos esses detalhes contribuem para que nós, espectadores, compreendamos a magnitude da experiência de Ellie e o quanto isto significou para ela. Por que além da personagem, apenas nós que nos encontramos em posição privilegiada, temos acesso a tais informações. Por isso o cuidado do roteiro e da direção em traçar para nós um perfil da personalidade da personagem para que ao final retomemos esses detalhes e possamos fazer parte desta experiência.
Cena 4 - A experiência de contato de Ellie
O relativismo científico em Contato
No último ato do filme observamos as influências das dinâmicas da comunidade científica, durante o retorno de Ellie e seu relato. Estes momentos nos evidenciam como uma série de fatores sociais, tais como os valores de um dado grupo interferem nas dinâmicas dos indivíduos da comunidade científica.
Podemos ter uma análise mais cuidadosa de tais questões à luz do relativismo. Para o relativismo não há uma verdade absoluta, objetiva, acima de qualquer experiência. O relativista considera conhecimento científico como sendo baseado em pressupostos arbitrários, onde as interações sociais são determinantes em sua estruturação (Japiassu, 2000) e o conjunto de valores de um individuo ou comunidade são extremamente relevantes no processo de construção do conhecimento cientifico (Chalmers, 2014). Deste modo, a prova científica é válida para os padrões de um grupo, de uma comunidade científica e neste processo a influencia social é decisiva em sua validação (Japiassu, 2000).
No caso de Ellie, sua experiência carece de provas, evidências físicas (ao menos no conhecimento da maioria dos personagens e do espectador até dado momento do filme), podendo contar apenas com o seu relato. Por ser extremamente subjetivo, contando com influencias de sua vida pessoal, tais como memórias e expectativas, sua experiência não é válida perante aos critérios de validação objetiva da comunidade científica.
No entanto, não podemos esquecer que os fatores subjetivos são fortemente influentes na formulação do conhecimento científico. Hilton Japiassu em sua obra Nem Tudo é Relativo afirma que “toda decisão científica é influenciada por fatores sociais e inspirada por motivações e objetivos extracientíficos. As certezas do cientista freqüentemente são crenças que ele abraça por razões subjetivas” (Japiassu, p. 36). Do mesmo modo que ocorreu à Ellie, as certezas de sua experiência foram moldadas por questões íntimas.
Cena 5 - O relato de contato de Ellie
Cabe destacar, que embora a subjetividade seja influente na formulação do conhecimento científico, tal como o relativismo defende, alguns valores ainda são importantes para tornarem a ciência um corpo de conhecimento sistematizado. Precisão em previsões (incluindo previsões quantitativas), a quantidade de diferentes problemas resolvidos, simplicidade e compatibilidade com outras especialidades são critérios que constituem valores na comunidade científica. No entanto, como esses valores serão relevantes dentro de um grupo depende de fatores psicológicos do cientista e sociais de sua comunidade (Chalmers, 2014).
O que observamos no contexto da obra é que há muito mais do que a presença ou ausência de provas. Há todo um contexto social e político que qualifica uma hipótese em favor da desqualificação de outra, onde a Navalha de Occan funciona apenas como um artifício metodológico. A pesquisadora é indagada por autoridades de qual hipótese seria mais provável diante deste mesmo princípio: uma viagem intergaláctica real, tendo um contato com uma forma de vida extraterrestre ou uma situação arquitetada por terceiros, associada a uma alucinação sua. Neste caso, ambas as hipóteses carecem de provas concretas. Embora o espectador esteja em posição de conhecer a veracidade do relato de Ellie, seus pares não o estão. Quando uma teoria não pode ser estabelecida por meio de provas, tendo-se duas hipóteses opostas, aquela que levantar menos dúvidas, deve ser aceita (Rodriguez-Fernández, 1999). É exatamente o que ocorre com Ellie, a hipótese aceita pela comunidade científica é de que toda sua experiência se tratou de uma orquestração do excêntrico financiador de sua pesquisa. Embora esta hipótese também careça de provas, aos demais cientistas, parece menos “absurda” que o relato de Ellie.
Cabe destacar que enquanto principio lógico, a Navalha não é completamente eficiente, uma vez que nem sempre a hipótese mais simples é a correta. Estas limitações surgem, sobretudo no caso de resolução de problemas que emergem de dificuldades técnicas (ibidem, 1999). É exatamente o que observamos no caso do filme. Os cientistas e especialistas técnicos não estão em posição para avaliar as questões técnicas da viagem espacial feita por Ellie em alguns segundos terrestres, além de avaliar a única prova desta viagem: a gravação de estática de horas. A única prova da veracidade do relato de Ellie que é mantida em sigilo pelo governo.
Logo, temos estabelecido no filme um cenário onde o governo dos Estados Unidos por meio do seu secretário de segurança torna indisponível a única prova física da viagem de Ellie, fazendo com que seu relato seja desqualificado. Deste modo a influencia política e social é determinante na construção de uma hipótese mais aceitável em detrimento da experiência pessoal e de pouco alcance político.
Por fim é interessante observar que Ellie sofre uma mudança de postura com o seu contato. Anteriormente adequada ao modo objetivo e racionalista dos mecanismos da ciência, Ellie via na observação, na razão e na lógica os alicerces para interpretar o mundo. O ponto de inflexão em sua perspectiva é o contato, onde Ellie percebe que a objetividade não é suficiente para alcançar a magnitude de seu relato. Suas limitações de provas físicas a tornam vítima do racionalismo e objetividade da comunidade científica da qual ela mesma se enquadrava. Interessante notar que mesmo tendo certeza da sua experiência, Ellie admite que julgaria do mesmo modo se estivesse em outra posição. É a aceitação, a resignação de que o modo duro e objetivo da ciência de interpretar os fatos não aceita e exclui o seu relato.
Esta experiência muda drasticamente a mentalidade de Ellie. A pesquisadora após o contato é uma cientista mais humana e preocupada com outras questões. Observamos isto ao vê-la junto às crianças atuando também como educadora, atenta à outras questões mais subjetivas e maleáveis da ciência.
Estas são questões que buscamos destacar com nossos estudantes. Tornar evidente a visão de uma ciência menos dura que leva em consideração a natureza humana e suas particularidades, sem deixar de ter o sua necessária sistematização. Ter esta oportunidade de debate no Ensino Médio é propor a compreensão da ciência, particularmente de uma Química, mais viva, preenchida com as particularidades que nos tornam humanos.
Referências
CHALMERS, A. F. O que é a Ciência Afinal? São Paulo: Editora Brasiliense, 2014.
JAPIASSU, H. Nem Tudo é Relativo - A Questão da Verdade. São Paulo: Editora Letras & Letras, 2000.
ROALD HOFFMANN, V. I. M., BARRY K. CARPENTER. Ockham’s Razor and Chemistry. International Journal for Philosophy of Chemistry, v. 3, p. 3-28, 1997.
RODRIGUEZ-FERNÁNDEZ, J. L. Ocham’s razor. Endeavour, v. 23, n. 3, p. 121-125, 1999.
RUSSEL, B. História do Pensamento Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. 492.